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Autismo

28/05/2019 - 08h00Por: Sulbahianews/Gleide de Sousa

Algumas pessoas bem intencionadas tinham a bondade de me explicar como os outros percebiam minha atitude. Conclui que meu comportamento tinha sempre duas interpretações possíveis: a delas e a minha. Essas pessoas “prestativas” tentavam me ajudar a “superar minha ignorância”, porém sem jamais procurarem, elas próprias, compreender a minha maneira de ver o mundo. (WILLIAMS, 2012, P. 153)

Este é um fragmento extraído da autobiografia de Donna Williams, intitulada Meu Mundo Misterioso (em sua tradução para o português). Autista de alto nível, ela nos relata uma situação vivenciada em seu local de trabalho. A fala de Donna nos chama atenção principalmente quando ela diz que as pessoas de alguma maneira tentam fazer com que ela se adapte ao mundo, mas essas mesmas pessoas não buscam compreender o mundo a partir do olhar dela. Nossa tentativa aqui é justamente nos lançar nessa questão, e buscar compreender o autismo a partir dos autistas, respeitando aquilo que é o singular de cada um. Não é apenas uma questão do autista se adaptar ao nosso mundo, mas aproximar nosso olhar de sua maneira de estar no mundo e de sua forma de percebê-lo. É dessa maneira que iremos conseguir acessá-los.

Castro (2019) nos coloca que o diagnóstico não é uma condenação para o sujeito, mas especialmente uma definição de direção de tratamento. O diagnóstico é importante para que possamos oferecer um tratamento viável às condições estruturais do sujeito. Cada estrutura tem as suas particularidades e é de extrema relevância que consideremos isso. Se tratarmos um neurótico como tratamos um psicótico, e vice-versa, os resultados podem ser desastrosos. Isto vale para qualquer estrutura clínica, inclusive o autismo. O diagnóstico é clínico e, para a psicanálise, não há exames de imagem para comprovar o autismo, embora haja os que sustentem que sim. Tampouco há medicamento para retirar o autismo, visto que autismo não é uma doença e, portanto, não tem cura. Os medicamentos quando utilizados são para tratar os sintomas de agitação e/ou para preservar a integridade física do autista em situações de crises. Não sem considerar os aspectos que lhes são singulares.

Atualmente, uma questão importante se impõe: estamos diante de uma “epidemia de autismo” ou uma “epidemia de diagnósticos”? Essa é a pergunta que norteia o Programa de Investigação Psicanalítica do Autismo – PIPA (e rabiola). Essa pergunta se sustenta diante do que se tem observado quanto às diferentes maneiras de diagnosticar o autismo e tem-se constatado muitos diagnósticos equivocados. Podemos imaginar, com pesar, os efeitos disso nas vidas de inúmeras pessoas, sejam estes os próprios sujeitos em questão, seus familiares e toda uma sociedade.   Um diagnóstico equivocado priva o sujeito de um tratamento adequado às suas reais necessidades.

O documentário “O nome dela é Sabine”, dirigido por Sandrine Bonnaire, nos mostra com notável sensibilidade o que um diagnóstico equivocado e tardio pode ocasionar na vida de alguém, arrancando deste toda a perspectiva de uma vida que poderia ter sido vivida de uma maneira melhor. Por isso, a insistência do PIPA na importância de que haja uma formação qualificada para os profissionais, e que não se condene alguém a um diagnóstico que ela não possui.

A psicanálise de Orientação Lacaniana da Associação Mundial de Psicanálise não considera o autismo uma doença, mas uma forma de estar no mundo, bem como a manifestação das outras estruturas clínicas: neurose, psicose e perversão. “Mesmo porque, para a psicanálise, a ideia de um homem normal é uma ficção estatística” (MALEVAL, 2017). Então, se entendemos que não se trata de uma doença, logo não há uma cura a ser perseguida, mas existem tratamentos de diversas maneiras que auxiliam o sujeito a obter melhores condições em sua vida como um todo.

A psicanálise concorda com estudos que apontam que o autismo é um espectro, que varia entre leve, moderado e grave. (CASTRO, 2018). Há vários saberes como o da Psiquiatria, da Genética, da Neurologia etc., a Psicanálise também compõe esse espaço com seus próprios conhecimentos acerca do autismo, baseado em suas pesquisas e em sua prática cotidiana, levando em consideração a cultura e os efeitos desta sobre a subjetividade. Vale ressaltar que foi exatamente isso o que orientou a psicanálise desde sua origem com Freud. É por esta razão que se diz que o autismo se fala no plural, uma vez que há tantos autistas quanto autistas há, mas o tratamento é tomado no singular, no caso a caso. Isto significa que uma mesma técnica não funcionará para todos os autistas, pois assim, como qualquer outra pessoa, eles são únicos e o tratamento prossegue a partir da abertura que eles nos oferecem.

Para a família, não é tarefa fácil receber um diagnóstico de um filho autista. É um processo. É um filho que chega quebrando os ideais e as expectativas dos pais. Muitas vezes, há muita dor e sofrimento na aceitação de um filho autista. A psicanálise tem sido uma ferramenta tanto para os autistas como para seus pais para lidarem com a situação e não se sentirem tão perdidos propondo um acolhimento às angústias e  uma escuta atenta, pois muito do tratamento de um autista, passa pela relação dos pais, familiares e cuidadores com os profissionais envolvidos no cotidiano deste. 

O autista tem suas dificuldades em lidar com o mundo, e alguns elementos lhes são característicos tais como os seus duplos, o ‘pensar em imagens’, a resistência em ceder a voz e os excrementos, o controle estrito do ambiente, dos alimentos, enfim, das inúmeras variáveis ao seu redor, a fala concreta a recusa ao laço social. O mundo perfeito para um autista, segundo muitos relatos autobiográficos, seria regido pela imutabilidade, onde tudo permaneceria exatamente onde está, pouco ou nada de surpresas pelo caminho, inclusive onde cada palavra possuísse apenas um sentido possível.

A psicanálise se oferece como uma das possibilidades de tratamento que visa ajudar os autistas a saírem de seus mundos fechados e inventarem soluções para o enfrentamento dos obstáculos, permitindo algum contanto com o mundo exterior, e algum laço social.

A Psicanálise vem contribuir para o tratamento ao propor justamente o que Donna nos apresenta como queixa no trecho acima: considerar não apenas a forma como nós entendemos o mundo, mas sobretudo um espaço de escuta para entender como o autista vê e sente o mundo e, assim, podermos ajudá-los em suas dificuldades para com o laço social. O tratamento é sempre a partir do que o autista nos permite trabalhar, é uma clínica sutil. O analista precisa estar atento aos detalhes as aberturas que eles nos oferecem para podermos auxiliá-los em seus impasses. Por isso, são importantes políticas públicas voltadas ao acolhimento das necessidades dos autistas, sejam nas escolas, nos postos de saúde, nas ofertas de tratamento, de trabalho e, mesmo, de residências onde possam levar uma vida com um pouco de independência e segurança.

*Texto com correção de Bartyra Ribeiro de Castro (Psicanalista).

PARA SABER MAIS ACESSE:

Autismo sob a ótica do “Pipa e Rabiola”.Thaís Venancio. Youtube. 29 de abr. e 2019.12 min e 06s. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zbA89Wm4fEM Acesso em: 15/05/2019.

LAURENT, ÉRIC. A causa do Autismo. LAURENT, ÉRIC. A batalha do Autismo. 1ª edição. Rio de Janeiro. Zahar, 2014. P. 17-35.

CASTRO, BARTYRA RIBEIRO. A Psicanálise pode contribuir para o tratamento de Autistas.

O nome dela é Sabine. Joice Naiaja. Youtube. 05 de jul. de 2016. 1 h 24 min e 31s. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Ig38tU_Wab8 Acesso em: 15/05/2019.

WILLIAMS, DONNA. Meu mundo misterioso. 1ª edição. Brasília. Thesaurus,2012.

MALEVAL, JEAN – CLAUDE. A nova clínica do autismo. MALEVAL, JEAN – CLAUDE. O autista e a sua voz. 1ª edição. São Paulo. Blucher, 2017. P. 67 – 86.

Por Gleide de Sousa.

  • Psicóloga Clínica CRP 03/19354;
  • Pós – graduanda em Psicologia Organizacional (FDA)
  • Podem mandar dúvidas ou sugestões para o e-mail: gleidegs22@gmail.com
  • Facebook Gleide Sousa
  • Ou pelo Instagram: @gleide_sousa_psicologa

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